sexta-feira, março 10, 2006

Na noite fria do dia de ontem.

Perdi-me por ruelas escuras e frias, húmidas de lágrimas que Homens choravam deitados na calçada da rua, envoltos em cartão, embrulhados em folhas de jornal amachucado por dentro dos farrapos, que faziam de roupa.
Despi-me de preconceitos, medos e vergonhas. Deitei-me ao lado deles, dei tragos na bebida que traziam guardada em sacos de papel, idênticos àquele em que eu costumo trazer o pão.
O bafo quente, da bebida que ardia ao longo do esófago e que caía no estômago, fazendo-me tossir, era um vapor denso contra o frio da rua, mas que ao mesmo tempo, me aquecia o peito e me entorpecia a alma.
Outras pessoas passavam.
Pessoas, como era eu horas antes, que não olhavam para os pobres desgraçados, ou desgraçados pobres, que se estendiam ao longo da rua. Se algum olhar havia, era de soslaio, um misto de despeito e pena, vergonha e revolta, nojo e insegurança.
Senti-me mal. Senti-me pedra da calçada, torta, gasta pelo tempo, pisada e repisada.
O tempo tornou-se eterno e duro.
Gelei o corpo, gelei a mente, as palavras ficaram entorpecidas pelo alcool que me deram a beber, eram monossílabos de lamentos ou de discursos sem sentido, mas que, aqueles que me rodeavam, ouviam ou fingiam ouvir, movimentando lentamente a cabeça, num gesto de concordância, para cima e para baixo, confirmando o que eu dizia.
Levantei-me, despi-me do ar de vagabundo, curei a tontura e ao fim de algumas horas, tornei-me eu, a que tinha comprado pão nessa manhã, na padaria em frente ao apartamento de duas assoalhadas, com vista para o mar.
Eu queria conhecer a condição humana e essa, eu vi que não tem limites para a desgraça ou para a bondade de quem a quer ver, de quem a procura conhecer.
Hoje comprei dois sacos de pão.
Ainda estavam quentes, quando me encontrei na ruela onde me tinha perdido.
Na calçada da rua, esperavam-me sentados, no cartão e no meio dos jornais, aqueles que me tinham aquecido com tragos quentes de bagaço, na noite fria do dia de ontem.

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caramba, caramba mesmo,mas euzinho aqui já fiz isso, com quse tudinho que aí está escrito sô. às vezes sentia vontade de sentar e dizer só dou dinheiro se me derem um trago,e fiz isso aí....

sábado mar. 11, 05:15:00 da tarde 2006  
Anonymous Anónimo said...

Só mais uns adendos que na emoção do acontecido esqueci de dizer que o texto está ótimo, punjente, pra lá de bom...bom domingo...

sábado mar. 11, 09:27:00 da tarde 2006  
Blogger SilenceBox said...

O titulo deste blog "Leituras silenciosas" chamou-me atenção e vim cá visitar. E... vou linkar-te no meu blog! A tua escrita é profunda e tocante, prende-me.
Continua a escrever...
Um abraço!

domingo mar. 12, 12:35:00 da manhã 2006  
Anonymous Anónimo said...

lindo......lindo....lindo.....comovente,real.bem aventurados os pobres de espirito,porque deles é o reino dos céus.Os ke passavam e olhavam com desdém,sao imensos nesta terra.descreves com AMPOR,akeles ke parecem n terem sidos os escolhidos ....filhos de um deus menor ..ou coisa assim!mas ...lembremo-nos sempre desta máxima:Os últimos serão os Primeiros.........com emoção e um beijo de gratidão por todos esses ke sofrem e ninguem se lembra deles.Continua a escrever assim.

domingo mar. 12, 04:07:00 da tarde 2006  
Blogger Jose Martins said...

Tão real... Tão frio...
Muito bom mesmo!! Cada vez melhor!

Beijo

segunda mar. 13, 02:50:00 da manhã 2006  
Anonymous Anónimo said...

Muito bom....nunca fiz isso,mas já pensei várias vezes em experimentar algo parecido...

segunda mar. 13, 01:06:00 da tarde 2006  
Anonymous Anónimo said...

seco.


duro.


mas suave.

quinta mar. 16, 05:37:00 da tarde 2006  
Anonymous Anónimo said...

Comovente...Fiel descrição do mundo em que vivemos muitas vezes de olhos fechados.

quinta mar. 16, 10:11:00 da tarde 2006  

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