domingo, novembro 26, 2006

Sombras


Norah Jones - "Turn me on"


Um dia vi sombras atrás das cortinas no prédio em frente.
Eu pensava que as sombras eram sinceras.
Julgava eu que, os gestos lentos das tuas mãos nas tuas pernas eram mais do que uma massagem de creme hidratante nos teu corpo.
Ficava sem folêgo quando te espreitava, quando te olhava e admirava.
As linhas do teu corpo eram perfeitas, bem delineadas, os teus contornos suscitavam o mirone que há em mim, mais e mais, a tal ponto que, a minha respiração parecia ter o compasso da tua e a volúpia enchia-me os sonhos todos os dias à hora de irmos para a cama...
O foco de luz que te iluminava e te fazia mostrar para mim só poderia ser intencional, tu sabias que as tuas cortinas eram véus de cor fina, e que se tornavam transparentes, e eu que estava no escuro a ver-te era facilmente notado pela ponta brilhante do meu cigarro. Mesmo assim ficavas. Gostavas de ser apreciada. Eu gostava de te apreciar. Julguei que ganhavamos coragem para nos encontrarmos ao atravessar a rua.
Mas afinal as sombras mentem e tu não te mostravas para mim, não te mostravas para ninguém, vivias atrás do véu que tapava a tua janela e assim te mantiveste...muito tempo, tanto, mas que era meu também sem tu o saberes.
E assim como surgiste nas sombras, nelas de esfumaste e nunca cheguei a saber a cor dos teus olhos, nunca cheguei a sentir o teu aroma ou esse toque de maos que, sem me tocarem, me embalavam todas as noites.
E um dia, olhei para o prédio em frente e não vi sombras, vi o escuro, adiei a hora de me deitar e esperei toda a noite.
Amanheceu e percebi que não haveria mais sombra alguma.

domingo, novembro 19, 2006

No fundo do mar


Snow Patrol - Run
Estavam deitados no areal, todos juntos formaram um círculo, deram as mãos, fecharam os olhos e tornaram tudo à volta uno e pleno.
E de repente as ondas eram todo o som que ouviam, e num fechar de olhos o mundo desapareceu, o frio fez as vezes do casaco e todos sentiram um arrepio na pele... O mar foi chegando, tocou as cabeças de dois ou três que estavam mais próximos, cobriu-os e salgou-os. Os outros continuaram deitados de olhos fechados. Até que um por um foi engolido pelas ondas do mar.
Estranhamente ninguém se sentiu a afogar, todos queriam aquilo, alguns vieram de longe para morrerem acompanhados, porque em vida estavam sozinhos.
"Olha o céu e tenta contar as estrelas... quando te cansares verás que são o número de vezes em que estiveste comigo, eu farei o mesmo... só que eu aguento mais tempo a contar."

(...)
"Não sei... De repente tudo aconteceu e tudo se resumiu a um momento.
E num momento parece que tudo desapareceu... "

(...)
"Regresso ao meu mundo mais tarde, quando for maior, quando for crescida..."
Os motivos foram vários, mas um os unia:
"Quero morrer, quero acreditar que tenho uma hipotese."
Poucos perceberam, poucos conseguiram entender porque não teriam eles gritado e pedido ajuda, mas todos eles choraram, porque não tiveram tempo para ouvir, porque não reconheceram o medo.
A hipotese?
hum... estiquem todos os braços até tocarem alguém. E se esse alguém estiver frio, façam vocês as vezes do casaco...

domingo, novembro 05, 2006

Alma que é corpo



A PERFECT CIRCLE - IMAGINE

Levantemos os olhos.
Olhemos o homem prostrado em frente àquele altar.
Vejamos a mulher que entra nesta igreja, neste exacto momento, e que se dirige ao confessionário.
Reparem na preocupação que, o homem, tem estampada nas feições e gestos de reza apressada (ou será compulsiva?) … Que faz ele? Medita? Ralha?
Não. Teme. Julga assim deitar da alma, que é corpo afinal, o seu mal, a sua loucura, a sua dor; tenta expurgar pecados que alguém lhe disse que eram só seus, que alguém lhe fez crer que o matavam, não cá, mas lá do outro lado (seja lá que lado for).
Sigamos então a mulher (porque a reza dele se alonga e nós temos o relógio a dar conta do tempo), acabada de entrar no confessionário.
Lá, à sua espera, sem saber quem aguarda, está o padre – homem quase santo, braço ou perna, cabelo ou pêlo de deus, não se sabe, eu não sei, mas ele assume-se como seu representante.
Esta mulher veio carpir a falta do seu homem, que foi para junto do Senhor “faz hoje dois anos”. E o padre, que é homem e cura males da alma, começa a pensar em como a pode ajudar. Começa a reza, o zunzum de lábios que se deveriam tocar em surdina, e ficam os dois assim uns minutos.
Escutemos os pensamentos do padre – shiuu baixinho – que perdido nas rezas, que já lhe são diárias e mais que diárias, que passam pelos minutos todos de um dia, imagina que as mãos são para tocar e que se um homem comum não o faz por respeito à viúva, ele, o padre, a pode abraçar. E já abraçado que está imagina que aquela boca já não beija, mas que tem ânsia de o fazer, e que esta mulher terá pernas roliças à espera de serem apalpadas e que os seios precisam de ser acariciados e que a cama de um homem pode ser de outro e logo este que só tenta aquecer a alma, que é corpo afinal, de uma crente… Respira…
Vejam como está perdido em pensamentos e calafrios, oiçam como debita monossílabos à mulher que desabafa e que entretanto – escutem - já terminou a carpideira.
“Ámen e que o Senhor te acompanhe”, que ele não pode, mas que o teria feito de livre vontade, por misto de obrigação dele e consolação dela afim de ambos serem libertos da tensão que os une e se sentirem em paz.
Ainda ali está o homem ajoelhado junto do altar, quando já sai a mulher porta fora, assoando-se num chinfrim de arrepiar, tão sozinha como quando entrou, mas logo sai também, vejam… Para onde? Não sei… mas vai solto, deixou no altar cruzes e pesos pesados de males que pensa ter.
E rezam estas três pessoas a um deus, que se diz se maior, mas deixam-se arrastar para um local de união em que cada um faz por si para atingir o seu Olimpo, para atingir a sua paz e nenhum deles confortou o outro e cada um deles queria ser confortado.
Vamo-nos embora que se faz tarde e há mais paróquias onde pregar, talvez numa delas esteja deus, o Grande, o pai, Irmão, o que for, talvez lá, consigamos entrar de coração aberto e não de ouvidos curiosos às rezas de outros…