sábado, maio 27, 2006

Diário de um suicída

Numa segunda - feira de manhã, Francisco, acordou e desejou que fosse o domingo chato do dia anterior.
Levantou-se, tomou banho, vestiu-se e tomou o pequeno-almoço. cereais de fibras integrais com sumo de laranja natural, cujas laranjas tinha espremido no dia anterior, antes de se deitar.
Vestiu a gabardina e saiu de casa.
Antes de entrar no prédio cinzento e austero, onde trabalhava, Francisco parou, na pastelaria do prédio em frente, para tomar café (receita quotidiana para obrigar os olhos a pestanejarem e para acelerar o funcionamento cerebral).
O trabalho foi igual, ou semelhante, ao de sexta-feira, fazer telefonemas para fulano "a" e para fulano "b" e esperar que finalmente o atendessem para lhe dizer "não"; foi ao gabinete do "chefe" (a besta quadrada que lhe pagava a porcaria do ordenado), que o mandou reescrever a noticia, que para variar iria aparecer no fundo da última página do jornal.
A hora do almoço foi tão vazia quanto cheia de batatas fritas embebidas em óleo girassol e nacos de carne mal-passada...no fim, tarte de pessêgo e café.
A tarde foi ainda mais chata, a noticía foi reescrita (mudou a vírgula de sítio) e entregue a tempo e horas; o resto do tempo "matou-o" a fazer a lista de compras.
Às seis da tarde, Francisco, vestiu a gabardina, pegou na pasta cheia de folhas e foi para a paragem do autocarro, amaldiçoando S.Pedro pelo dilúvio que sentia na cabeça, bem como, o Homem, por ter conseguido ir á lua e ainda não ter inventado algo melhor do que o guarda-chuva!
Chegou a casa, pegou nas chaves do carro e foi às compras: uma garrafa de tequilla, amendoins picantes, limas, açucar... ah! duas cervejas para beber enquanto faz o jantar.
Já em casa, Francisco preparou o seu jantar preferido: pizza de cogumelos aquecida no microondas.
Jantou no sofá, de olhos postos no ecrã, mas sem ouvir o que se dizia na televisão. Jantou e pegou nas compras feitas. Fez para si próprio umas quantas caipirinhas.
Tocam à campaínha. Do lado de lá da porta estão dois amigos da faculdade, dois jornalistas de sucesso, que ultimamente já só via na televisão. Abraços e gargalhadas, servem-se mais caipirinhas e contam-se histórias da vida, recordam-se momentos passados que assombram o presente quando a nostalgia aperta.
"Que se lixe o trabalho! Hoje divirto-me, amanhã falto!" - pensou Francisco.
E o resto da noite e da madrugada provocam em Francisco a felicidade de outros tempos...
Os raios de Sol entram pela janela. A noite acabou...
Francisco acorda ao som do despertador que acciona a rádio... ouve-se "À espera do fim" de Jorge Palma.

domingo, maio 21, 2006

António



A televisão, mostra, no ecrã, António a dar os primeiros passos... está de braços esticados, olhos fixos em Ana enquanto diz “mamã”... cai de rabo no chão, não chora e chama “papá”...
Luís pousa rapidamente a câmara, que continua a filmar, e vai em “socorro” do filho, abraça-o e embala-o.
Vê-se na imagem Ana que sorri ternurosamente a ver a imagem dos dois amores da sua vida.
António quer voltar para o chão, dá passinhos, como que pulinhos, enquanto segue um caracol... a sua gargalhada ouve-se nitidamente e ecoa agora nos ouvidos dos pais enquanto vêem a imagem.
Gatinha António, porque se cansou, e o caracol também não é muito rápido.
O dia está quente, a criança está só de fralda, senta-se e bate palmas, depois segura o biberão e bebe água.
Gatinha novamente em direcção aos pais, parece que vai sair do ecrã, a mãe quase que estica os braços à espera de o segurar e sentir o seu cheiro de bebé ... mas estaca...
Luís nem repara, mantém-se fixo no ecrã, onde o filho, coça o nariz com as costas da mão e fecha os olhos com muita força, diz o pai “tem sono”.
A imagem mostra Ana de costas a pegar no filho, deita-se na rede do jardim e abana-a ligeiramente enquanto embala o filho como um “ó –ó, ó –ó” lento e suave. António encosta a cabeça no peito da mãe, mesmo em cima do coração, só para a ouvir bem de perto e fica tranquilo... adormece passado uns minutos, a mãe também, o pai filma... e cobre-os com uma manta de algodão.
No ecrã. Fica esta imagem uns segundos, depois Luís faz “zoom” para ver melhor a cara do filho, sossegado, a respirar levemente, com a boquinha ligeiramente aberta... neste momento faz-se “stop” no dvd.Do lado de cá do ecrã, fica o casal abraçado, no sofá... à espera de ouvir o choro de despertar do filho António, o menino que nunca cresceu.

sábado, maio 20, 2006

Porque...


...se acabou o tabaco e só ficaram as mortalhas e os filtros, olho
(em vão)
o céu, através da janela do meu quarto...
e tá escuro, escuro, escuro,
não o céu,
o olhar,
e não está quente, quente, quente,
não o ar,
a pele...
e fico eu, tal como a gente que dorme, perdida em sonhos,
mas os meus, não como o dos outros,
são de vicios e não de contas,
...
são de vidas.
(nota:
foi isto que se acabou:)

quinta-feira, maio 04, 2006

"Tó Zé"

Não tem direito a misericórdia. Apanharam-no de arma na mão.
Derrubaram a porta da frente, Tó Zé saiu de mãos no ar com a arma apontada ao céu.
A mãe gritava "Meu Deus!".
Tó Zé queria disparar sobre o manto azul que o cobria, a ele e ao mundo, e queria atingir a Casa daquele por quem gritava a mãe.
A raiva acumulada, sentia-a ele com o sangue a ferver-lhe nas veias, viam-na os policias nas veias salientes do pescoço - tinha-no em mira, não fosse o diabo tecê-las...
A mãe começou um pranto enquanto bradava aos céus, numa dor que só quem pariu sente, enquanto Tó Zé, dava passos lentos em direcção àqueles que lhe apontavam armas.
- "Pouse a arma" - disseram-lhe.
Pousou-a Tó Zé.
- "Deite-se no chão!" - gritaram.
Deitou-se Tó Zé.
- "Maõs atrás das costas!" - ordenaram.
Assim fez Tó Zé.
Meteram-no no carro depois de o algemarem.
- "Calem-me essa mulher, que não a suporto ouvir!" - gritou o homem, (devia ser o chefe, mas isso já é uma suposição do narrador), morre o choro da mãe em compassos lentos de soluços.
Tó Zé é preso, "enjaulado" - palavras dele, que quem escreve não diria de tal forma!
Passaram-se meses e ele ainda ali está, dentro de três paredes, porque a quarta é uma porta de ferro: na cela não dorme mais ninguém.
Este homem, que está preso, tem apenas uma visita: a mãe, que lhe traz bolachas de manteiga e cigarros, que ajudama queimar o tempo, tempo que durará quinze anos com redução de pena - assim se espera, ou melhor, assim espera a mãe (porque quer o filho) e o advogado (porque é mais uma vitória), porque que se saiba, mais ninguém quer este homem a andar pelas ruas.
Tó Zé é um homicida.
A mãe tem escrito "assassino" nas paredes lá de casa, por gente que com raiva e ódio se permite a essas coisas de humilhar quem pariu tal homem - "bicho" é o que lhe chamam- tão odioso!
O tribunal chama Tó Zé - o advogado falou em liberdade condicional.
Tó Zé pede para ir à casa - de- banho.
Chamam para entrar na sala... demora-se o arguido. Batem os guardas à porta :"mas este filho- da - mãe não sai da retrete?" - e arrumbam a porta com um pontapé.
Lá dentro, sentado na sanita, não está um Tó Zé mal dos intestinos, mas sim um homem sufocado, um homem privado de oxigénio, com um saco de plástico metido na cabeça.

FIM