domingo, novembro 20, 2005

Siameses 2

O bebé foi embora levado pela mulher de bata branca.
Ele, o pai sentiu a angustia no peito, por estar longe dEla e do seu filho. Ela, a irmã, a mulher, a mãe, ficou sozinha esticada na cama fria, chorando por alguém que não viu, por alguém que sentiu, chorou também por Ele, chorou por ela mesma, chorou de raiva pela culpa que lhe infligiram.
Ele fugiu das cordas que o prendiam, das quatro paredes que o rodeavam e partiu em busca da sua mulher, do seu filho. Encontrou-a dorida de ter parido, dorida de dor d'alma, morta de espirito. Ela, que estava de olhar ausente, conseguiu ve-lo e logo ali a lágrima que já não tinha, de tanto chorar, voltou a escorregar-lhe pela face e sem querer, sem sequer se aperceber, conseguiu aquecer o coração, libertou um suspiro e prendeu-o nos braços.
Timidamente beijaram os lábios um do outro, não tiveram vergonha, os dedos já tinahm sido apontados, essa dor já tinha passado. Agora a dor era outra, o direito era outro...
Era a culpa sem culpados, com inocentes não inocentados, por amizade confundida com amor, pelo medo confundido pela solidão...
E agora, que fazer?
Corre Ele atrás da mulher de bata branca, escorrem-lhe lágrimas de desespero, lágrimas de raiva que se confundem com as gotas de suor causadas pela corrida. Ela chega mais tarde ofegante... Puxa-lhe o braço, à mulher de bata branca, e fa-la esperar. Ela recupera o folego "Foi esta???", a pergunta ecoa nos ouvidos da mãe, que responde "Sim, foi ela que o levou!" -nem sabe se é rapaz ou rapariga, não lhe dizeram.
"Onde está ele? Onde está o meu filho?" - o desespero transmite-se no tom de voz...
A enfermeira,que nada sabe dos sentimentos daqueles dois, grita por ajuda. Chega um amontoado de gente vestida de branco, que encandeia tudo e todos ao reflectir os raios da luz artificial.
Fecham os olhos, nada mais veêm. São levados à sala do fundo... O filho está ali, vão deixá-los vê-lo, mas não lhes vai ser entregue : "É fruto do pecado!!! São irmãos! Ele não vos pertence! Que vergonha terá ele de vós quando crescer... Assim é melhor, não saberá de nada e viverá feliz com outros pais!".
Não responderam, a vontade de ver a criança não os deixava pensar em mais nada!
Ah! Como foi bom, vê-los aos dois com a criança nos braços, ainda que sob olhar atento... Como foi bom vê-los a sorrir, e a sonhar novamente com um amanhã. Foi bom ver aquela criança deixar de sufocar, com o choro,quando tocou com a sua boquinha na mama da mãe. Bom, bom, foi ver aqueles três envolvidos no olhar uns dos outros, nas caricias que faziam uns aos outros, ver o Amor ali, naqueles três...
A tarde passou, tinham que se separar. A angústia apertava-lhes o peito, o tempo corria rápido demais... a mulher de bata branca, levantou-se, para fazer só ela sabe o quê, quando voltou já ali não estavam.
Ecoa o alarme entre os "bata branca"...
Aos três nunca mais ninguém os viu ou se viu fez de conta, porque isto de separar pais e filhos, irmãos e irmãs, não é acção que qualquer Homem faça, às vezes não há coragem que chegue, não há tamanha indiferença ao amor... digo eu que ainda aqui estou.

(Espectro: a tua proposta para a continuação do texto "Siameses" foi encarada como um desafio. Por isso aqui tens a estória. Espero que tenhas gostado! )

quarta-feira, novembro 16, 2005

Hoje ´tá de chuva


É um dia de chuva, que me alegra tanto como um dia de sol.
Hoje 'tá de chuva e eu recebi uma prenda. Uma prenda que gostei muito.
Acendo um cigarro, faço uma névoa no ar, que me faz parar e me faz inspirar e expirar lentamente.
Deixo a mesa e fico perdida no preto da folha branca, escuto por detrás de uma porta, olho,por uns binóculos, o outro lado da rua, tomo nota da acção... volto à mesa para mais um cigarro. Olho a capa, vejo as cores, torno ao preto na folha branca, puxo a imagem atrás (gostei do que vi), continuo... e fico embrenhada num mundo que não criei, mas que durente 192 virares de folha, faz parte de mim.
Hoje ´tá de chuva e eu recebi uma prenda. Uma prenda que gostei muito.
Olhei-a e devorei-lhe a capa, a forma, o tamanho, as cores, as letras...
Abri a primeira página e cheirei-lhe as folhas. Sentei-me e preenchi-me.
Foi esta a minha prenda, o livro lido ao sabor do café, das bafuradas de fumo, do bater da chuva no vidro... da sensação da imagem inventada.


sábado, novembro 05, 2005

Siameses

Nasceram no mesmo dia, separados por uns minutos, longos de dor e de gritos aflitos, desespero da mãe que os pariu. Cada um sentiu o sufoco da separação, cada um soltou o seu grito, também este de aflição, dorido e de desespero, mas também de vida.
Pai e Mãe, não os conheceram. Foram crianças abandonadas à nascença. Ficaram sozinhos, cada um com cada qual.
Viveram juntos, com outros como eles, abandonados, rejeitados, mal-amados; Cresceram como os outros, Ele e Ela, separados por minutos, mas brincavam juntos, comiam juntos, dormiam juntos. Estavam já grandes, continuavam juntos, comiam juntos dormiam juntos às escondidas dos outros, queriam-se e temiam-se, gemiam de prazer, juntavam corpos e almas, faziam o seu coração bater em uníssono.
Ele e Ela não conseguiram esconder, descobriram-lhes os corpos nus nos lençóis, amaldiçoaram-nos, repugnaram-nos, injuriaram-nos, separaram-nos... voltaram os gritos de dor, de desespero, de aflição...
Quiseram fugir juntos, tinham os peitos unidos, como que colados, eram “um”, mas não conseguiram...
Ele soube que Ela gritou muito mais do que Ele, gritos de dor e de amor, soube que o coração dos dois batia num só peito, era uma só alma; soube que arrancaram o filho, o irmão, dos braços dEla. Ela viu e sentiu.
Partiram um coração a meio, e deixaram-no num corpo frágil de uma criança, fruto do amor de dois abandonados à nascença pela mãe...