domingo, abril 30, 2006

Hoje apetece-me dizer...

"Where is my mind?"

(Pixies)

domingo, abril 23, 2006

Arrependimento

“Até lá, estás melhor sozinho...” – disse-lhe no tom mais frio que conseguiu.
Por dentro chorou.

Ele chorou à frente dela. Não proferiu uma palavra. Deixou-se cair no maiple e pôs as mãos sobre os olhos. Ao fim de uns minutos de silêncio, quebrados por sons de lágrimas que saem em soluços por não puderem ser gritos, ele olhou para ela, olhos nos olhos, alma na alma e pediu-lhe, com palavras mudas, um abraço.
Ela não lho deu e saiu da sala, saiu de casa.

Nunca mais a viu, porque os advogados faziam a conversa. Teve pesadelos e sentimentos de culpa: nunca se assumiu homem de uma só mulher, mas sempre amou só uma, só a amou a ela, e com ela quis ficar sempre, até ao fim.
Teve o fim mais depressa do que pensou, ela escapou-lhe entre os dedos. Nunca mais a iria prender nos braços e fazer rodopiar na sala, deixando-se cair no tapete, por fim, por força do cansaço, e ali adormeceriam a olhar para o tecto e a desenhar nele sonhos a dois.
“Será que o tempo volta para trás se eu lhe pedir desculpa” – nunca chegou a ter resposta, porque, por cobardia e vergonha, nunca perguntou.
Os sonhos eram insuportáveis pela felicidade que faziam sentir. Tudo lhe lembrava a mulher que amava e só então se apercebeu que precisava realmente dela, a cara, os gestos dela perseguiam-no para todo lado. Os cabelos castanhos que passavam por ele, na rua, eram os dela, mas o cheiro era diferente, eram cheiros enjoativos, cheiros de desdém, cheiros de desamor.
Os engates dos bares tornaram-se ineficazes de satisfazerem até o desejo físico – “sou ridículo, não consigo amar!”.
-“não consegues sequer apalpar...!” – e novamente eram-lhe negados abraços e saiam de casa passos femininos.
A casa era o templo deles. Ele teve que sair de lá. Foi viver para um rés – do- chão, o esquerdo, porque ela gostava do lado direito. Com ele só levou o maiple em que chorou, fora ela que o tinha comprado e ainda tinha o cheiro dela misturado com o dele...
Todas as suas memórias foram com ele e eram insuportáveis.
O peso do mundo era grande, tão grande, que um dia enquanto olhava as linhas das suas mãos e tentava de alguma maneira desvendá-las, viu que eram curtas...
A arma, contra o palato, foi a última coisa que as suas mãos seguraram.

sábado, abril 22, 2006

Hoje

... vi o assassino a ser assassinado. Não tive prazer algum nisso.

sexta-feira, abril 14, 2006

...

As ruas são de um vermelho escarlate que vai ficando mais pálido à medida que os minutos fazem horas.
Até agora estive melhor sozinha, de sorriso nos lábios, porque não havia nada para perder.
O céu está escuro, com pontos brancos, centilantes a que chamam estrelas.
Da próxima vez não falo, ajo e fica decidido. Falo e fica tudo resolvido com a criação de um mundo em que comunicamos: a linguagem dos apaixonados.
A aurora pisca-me o olho ou pisco-lhe eu os olhos, porque pestanejo rapidamente por culpa da claridade que me atormenta, não sou das luzes, não repito o erro... vou certificar-me que até lá as ruas voltem a ser de vermelho escarlate.
e tu?
tu perdoa-me por o meu mundo ser assim, não é tão grande quanto eu queria que fosse... jogo pelo seguro, só isso...

sexta-feira, abril 07, 2006

Hoje apetece-me dizer...

...que a tempestade não está no tempo.

sábado, abril 01, 2006

Maria

Trinta anos, mãe solteira de uma menina de cinco, moradora no quinto andar, num apartamento de duas assoalhadas, de um prédio antigo colocado à saída de uma cidade, Maria, gasta o dia numa padaria onde trabalha. Não pensa, age quase por instinto, não fala, solta monossilabos aos clientes, não sorri, tem espasmos faciais que muitos julgam ser simpatia.
Quando chega a casa, depois de ir buscar a filha ao ATL e de lhe dar banho, perde as noites a bebericar vinho tinto e pensa:"deve ser bom ser jovem e livre...".
Maria não é velha, mas parece uma mulher de sessenta sem ninguém que a visite; os trinta anos de Maria foram agitados, mas não vividos. Perdeu a sua juventude com um homem quinze anos mais velho, que depois de a ter engravidado fugiu dela, mudou de país, com mulher e filhos - os legítimos, como lhe foram designados - e nunca mais teve noticias.
A filha é a razão de viver de Maria, vive tão só para ela, mas a solidão enche-lhe o peito, e o medo de morrer e deixar abandonado o ser, que lhe alimenta os dias, é uma dor que Maria não suporta.
Quando se sente sozinha, muito, muito, quando o coração parece tão apertado que quase não palpita, Maria corre para o quarto da filha e aperta-a contra o peito, só a largando quando amanhece...
A solidão e o alcool estão a derrubar Maria. Deixou o trabalho e é perseguida por fantasmas do passado e deixa-se povoar por fantasmas do futuro que são de mau agoiro.
Está louca Maria. A sua sanidade só espreita, quando está com a filha: leva-a à escola, dá-lhe as refeições a horas, dá-lhe banho e conta-lhe histórias de mundos maravilha... adormece com o cheiro a camomila dos cabelos da filha e com hálito de vinho tinto...
Maria abriu a carteira, não tem dinheiro para o pão, o fantasma do futuro diz agora que é do presente.
A ideia de deixar a filha entregue a uma pobreza e solidão igual à sua desespera esta mãe. Não há portas onde bater.
Saõ 23h30m do dia 1 de Abril de 2006, Maria foi ao quarto da filha, apertou-a contra o peito, beijou-lhe a testa, pôs-lhe as asas de borboleta e voou com ela pela janela.