sábado, abril 01, 2006

Maria

Trinta anos, mãe solteira de uma menina de cinco, moradora no quinto andar, num apartamento de duas assoalhadas, de um prédio antigo colocado à saída de uma cidade, Maria, gasta o dia numa padaria onde trabalha. Não pensa, age quase por instinto, não fala, solta monossilabos aos clientes, não sorri, tem espasmos faciais que muitos julgam ser simpatia.
Quando chega a casa, depois de ir buscar a filha ao ATL e de lhe dar banho, perde as noites a bebericar vinho tinto e pensa:"deve ser bom ser jovem e livre...".
Maria não é velha, mas parece uma mulher de sessenta sem ninguém que a visite; os trinta anos de Maria foram agitados, mas não vividos. Perdeu a sua juventude com um homem quinze anos mais velho, que depois de a ter engravidado fugiu dela, mudou de país, com mulher e filhos - os legítimos, como lhe foram designados - e nunca mais teve noticias.
A filha é a razão de viver de Maria, vive tão só para ela, mas a solidão enche-lhe o peito, e o medo de morrer e deixar abandonado o ser, que lhe alimenta os dias, é uma dor que Maria não suporta.
Quando se sente sozinha, muito, muito, quando o coração parece tão apertado que quase não palpita, Maria corre para o quarto da filha e aperta-a contra o peito, só a largando quando amanhece...
A solidão e o alcool estão a derrubar Maria. Deixou o trabalho e é perseguida por fantasmas do passado e deixa-se povoar por fantasmas do futuro que são de mau agoiro.
Está louca Maria. A sua sanidade só espreita, quando está com a filha: leva-a à escola, dá-lhe as refeições a horas, dá-lhe banho e conta-lhe histórias de mundos maravilha... adormece com o cheiro a camomila dos cabelos da filha e com hálito de vinho tinto...
Maria abriu a carteira, não tem dinheiro para o pão, o fantasma do futuro diz agora que é do presente.
A ideia de deixar a filha entregue a uma pobreza e solidão igual à sua desespera esta mãe. Não há portas onde bater.
Saõ 23h30m do dia 1 de Abril de 2006, Maria foi ao quarto da filha, apertou-a contra o peito, beijou-lhe a testa, pôs-lhe as asas de borboleta e voou com ela pela janela.

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Alo Maria, estás com a mão boa para contar desditas, mas a vida é assim mesmo. gostei...beijos.

domingo abr. 02, 10:19:00 da manhã 2006  
Anonymous Anónimo said...

     ⊂⊃     O Espectro #999 esta noite não dormiu [...] ficou acordado, a reflectir na vida     ⊂⊃     a sentir a noite avançar no tempo     ⊂⊃      [...] o Espectro #999 viu amanhecer o dia encoberto de nevoeiro, para, logo de seguida     ⊂⊃     dar lugar à brilhante visão de um Sol radioso [...] e decidiu vir ao Cyber-café     ⊂⊃     ver quem poderia, eventualmente, ter passado uma noite nos mesmos termos.     ⊂⊃     Não vislumbrou, por enquanto, ninguém... mas ao ler este teu comentário     ⊂⊃     perguntou-se [...]     ⊂⊃     se isso era mesmo necessário [...] se isso não era, agora, algo inorportuno.

Bonita [...] mas triste, esta história... impressãodigital.

Beijocas e inté.

domingo abr. 02, 10:19:00 da manhã 2006  
Anonymous Anónimo said...

Ola Ana...

Bem, deves tar a pensar "quem é este gajo?!?"... Enfim! Até eu dou comigo a pensar isso de vez em quando... Lol!
Segui o teu rasto até este blog com a ajuda dum fórum que já partilhamos e também de alguma curiosidade à mistura...
:)
Li-o... Quase todo! Pelo menos enquanto o meu sono o permitiu. Adorei. Esta história particularmente.
Há muita gente que escreve inspirada, mas nem toda a gente chega a ficar transpirada com o que escreve! E sabes que mais? O teu blog cheira não só a inspiração, mas também a transpiração! Parabéns, a sério!
Também escrevo... tem dias! Um dia mostro.
Beijinhos. Prometo intrometer-me no teu blog novamente... :)

N.

segunda abr. 03, 01:20:00 da manhã 2006  
Blogger Ana João said...

quem é o N.?

segunda abr. 03, 05:10:00 da tarde 2006  
Anonymous Anónimo said...

"N." pode ser n' de coisas...
Pode ser um "N." de nada, um "N" de Natércio, de Nuno, de Narciso, de Narcisista... Lol! Um "N." de Não, de não faz falta saberes quem sou! :) Eheh! Pelo menos para já... Mas não te preocupes que eu também não sei quem tu és! :D

N''''

terça abr. 04, 12:36:00 da manhã 2006  
Anonymous Anónimo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

quarta abr. 05, 03:36:00 da tarde 2006  
Anonymous Anónimo said...

Sou amante da profunda liberdade, por isso de uma ideia que atormenta faço um norte e tal como a vida me ensinou saio porta fora na esperança que uma luz me invada a alma e leva-me para longe deste silêncio que invade os passos da certeza, onde o tempo corre devagar, na esperança que a lua apaixonada se torne a levantar e que a boca fale o que o coração tem para dizer; que não estou cá para sofrer mas sim para viver, que já são horas de ser feliz e nem que para isso me torne parte inteira de uma vida vagabunda, me torne pescador de coisas belas, de emoções, da forma bonita e completa de se viver.

R.R.

KISS

quarta abr. 05, 03:39:00 da tarde 2006  
Blogger simao said...

fazia uns tempos que por cá não passava... já li uma data dos textos que tinha atrasados, mas este ecoou. há a questão da loucura, doença ou agressão imposta pela sociedade?? há a questão do amor como motor da vida e da morte...
em grande!
como tantas vezes, fico com vontade de te ver desenvolver mais os textos, explorares extensões maiores de texto.
*simao

terça mai. 09, 12:04:00 da tarde 2006  

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