quarta-feira, maio 18, 2005

A cor da morte

A rua estava deserta e por mais que tentasse não conseguia parar de te ver. A tua cara perseguia-me, as tuas mãos pareciam tocar-me, mas quando te tentava agarrar o teu corpo esfumava-se no ar e desaparecias.

Faz hoje um ano que deixei de te ver; faz hoje um ano que o teu corpo sucumbiu ao golpe fatal; faz hoje um ano que vi aquela mancha a tornar-se maior e maior como que cobrindo todo o teu abdómen; faz hoje um ano que deitei fora as roupas sujas do teu sangue; faz hoje um ano que limpei o teu sangue das minhas mãos; faz hoje um ano que chorei e que não voltei a faze-lo...

Não vivo obcecada por ti, mas hoje foi mais forte, lembrei-me de tudo.

Lembrei-me da faca, lembrei-me dele, dos seus olhos cheios de raiva, dos teus olhos cheios de medo, do meu olhar aterrorizado, das suas palavras directas e autoritárias, das tuas a tremer, das minhas caladas, lembrei-me do seu gesto rápido que te atingiu e te roubou de mim, do teu gesto de defesa, do meu gesto lento em te socorrer…

Lembrei-me que te pediu “lume”, lembrei-me que tu deste, lembrei-me que te exigiu o dinheiro, a minha carteira; lembrei-me que cedi, lembrei-me que negaste e acenaste, não sei porque ,para quê (talvez para intimidar); lembrei-me que não tomaste a atitude certa; lembrei-me que morreste nos meus braços, que o teu olhar fixou um ponto que não eu, ele fugiu, tu apagaste o brilho nos teus olhos e eu chorei, chorei…

Foste tapado com um lençol branco, mas que se tornou na cor da tua morte, ficou vermelho, um vermelho que parecia absorver tudo o que o rodeava, parecia que te cobria todo, a mancha parecia espalhar-se e espalhar-se…eu limpava a tua morte do eu corpo, mas doía, doía tanto…

Faz hoje um ano que deixei de chorar, que deixou de doer, sem deixar de magoar, sem deixar de existir mágoa pela saudade que ficou dia após dia, pela saudade do que fomos, pela vontade do que poderíamos ter sido.

E fico assim calada a olhar para a tua fotografia, e fico assim calada a sentir… vou-me embora, tu ficas, mas nunca te irás embora de mim.

Pega, estas flores são para ti.

9 Comments:

Blogger Nandita said...

Está muito bom, de arrepiar.
Bj

quarta mai. 18, 06:00:00 da tarde 2005  
Blogger Der Überlebende said...

Muito bom, a transbordar de raiva, angústia e inconformismo!
Gosto muito do teu estilo mordaz e "sujo", tens muitas linhas ainda por escrever, lê-se ansiedade de dizer mais e contar mais estórias em cada texto teu.

Boas escritas,

beijinhos

quinta mai. 19, 02:07:00 da manhã 2005  
Blogger Monique Mendes said...

Verdadeiramente SUBLIME!!!
Muito bom mesmo!
Acho que o dia 18 de Maio tem muito que se lhe diga...para ti, no texto, há um ano atrás... para mim este ano!
Beijinhos***

quinta mai. 19, 06:31:00 da tarde 2005  
Blogger Murdoc said...

A noite tem qualquer de especial.. tem um lado bonito e outro "menos bonito". Gostei ;) - para não variar.
Um bejo

quinta mai. 19, 07:53:00 da tarde 2005  
Blogger Dra. Laura Alho said...

A vida é tão precária...
E tu, em poucas linhas, revelaste uma série de sentimenos que nos assolam quando ela (vida) foge de nós, sem que o queiramos.

Beijoka e bom fim-de-semana *

sexta mai. 20, 06:11:00 da tarde 2005  
Blogger (in)confessada said...

numa palavra: intenso.
voltarei pra te ler :)
bjo confesso...

domingo mai. 22, 01:08:00 da tarde 2005  
Blogger Red Boys ESTAÇÃO said...

Nada a dizer... tens a sua impressão digital, imortalizada nestas palavras. Estará sempre contigo.
Abraço Forte.

terça mai. 24, 11:52:00 da manhã 2005  
Blogger Andre_Ferreira said...

Já fui assaltado inumeras vezes, da última fiquei muito mal tratado, este texto fez-me recordar esse dia. Por sorte estou vivo, não posso é deixar de ler este texto sem um arrepio.

Beijinhos

quarta mai. 25, 11:40:00 da manhã 2005  
Blogger Artaud said...

so... emocionante... intenso.

terça mai. 31, 07:17:00 da tarde 2005  

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